XXXI - Em que o inspetor Fix leva muito a sério os interesses de Phileas Fogg

Phileas Fogg estava com 24 horas de atraso. Passepartout, a causa involuntária deste atraso, estava desesperado. Tinha decididamente arruinado seu patrão.

Neste momento, o inspetor aproximou-se de Mr. Fogg, e, olhando diretamente para ele:

– Realmente, senhor, perguntou ele, tem muita pressa?

– Realmente, respondeu Phileas Fogg.

– Insisto, retomou Fix. Está mesmo interessado em estar em Nova York dia 11, antes das onze horas da noite, hora da partida do paquete para Liverpool?

– Muitíssimo interessado.

– E se sua viagem não tivesse sido interrompida por este ataque dos índios, teria chegado a Nova York dia 11, pela manhã?

– Sim, com onze horas de antecedência em relação ao paquete.

– Bem. Nesse caso tem vinte horas de atraso. Entre vinte e doze, a diferença é de oito. São oito horas a recuperar. Quer tentar fazê-lo?

– A pé? perguntou Mr. Fogg.

– Não, em trenó, respondeu Fix, em trenó a velas. Um homem me propôs esse meio de transporte.

Era o homem que falara com o inspetor de polícia durante a noite, e cujo oferecimento Fix tinha recusado.

Phileas Fogg não respondeu; mas Fix tendo-lhe mostrado o homem em questão que passeava na frente da estação, o gentleman foi até ele. Um instante depois, Phileas Fogg e este americano, que se chamava Mudge, entravam numa cabana construída abaixo do forte Kearney.

Lá, Mr. Fogg examinou um veículo muito singular, espécie de tabuleiro, colocado sobre duas longas vigas, um pouco arqueadas para cima na parte dianteira como os pontos de apoio de um trenó, e sobre o qual cinco ou seis pessoas poderiam se acomodar. A um terço do tabuleiro, na frente, estava um mastro muito elevado, sobre o qual estava estendida um imensa brigantina. A este mastro, solidamente sustentado por cordames metálicos, ligava-se uma escora de ferro que servia para içar uma bujarrona de grandes dimensões. Atrás, uma espécie de leme permitia dirigir o aparelho.

Era, como se vê, um trenó armado em corveta. Durante o inverno, sobre a pradaria gelada, quando os trens são detidos pela neve, estes veículos fazem travessias extremamente rápidas de uma estação a outra. São, além disso, prodigiosamente dotados de velas – mais do que seria conveniente num cutter de recreio, exposto a emborcar – e com o vento por trás, deslizam sobre a superfície das pradarias com uma rapidez igual, se não superior, à dos expressos.

Em alguns instantes, uma negociação foi concluída entre Mr. Fogg e o patrão desta embarcação de terra. O vento estava bom. Soprava rijo de oeste. A neve estava endurecida, e Mudge se comprometia a conduzir Mr. Fogg à estação de Omaha em poucas horas. Lá, os trens são frequentes e as vias numerosas, para Chicago e Nova York. Não era impossível recuperar o tempo perdido. Não havia por quê hesitar em tentar a aventura.

Mr. Fogg, não querendo expôr Mrs. Aouda às torturas de uma travessia ao ar livre, por este frio que a velocidade tornaria mais insuportável ainda, propôs-lhe que ficasse sob os cuidados de Passepartout na estação de Kearney. O honesto moço encarregar-se-ia de reconduzir a jovem à Europa por um caminho melhor e em condições mais aceitáveis.

Mrs. Aouda recusou separar-se de Mr. Fogg, e Passepartout se sentiu muito feliz com esta determinação. Com efeito, por nada neste mundo teria querido deixar seu patrão, já que Fix devia acompanhá-lo.

Quanto ao que pensava então o inspetor de polícia seria difícil dizer. Sua convicção teria sido abalada pelo regresso de Phileas Fogg, ou consideraria que era um velhaco de marca maior, que, depois de haver feito a volta ao mundo, se julgaria absolutamente seguro na Inglaterra? Talvez a opinião de Fix a respeito de Mr. Fogg se tivesse efetivamente modificado. Mas nem por isso estava menos resolvido a cumprir o seu dever e, mais impaciente que todos, a apressar como pudesse o regresso à Inglaterra.

Às oito horas, o trenó estava prestes a partir. Os viajantes – seríamos tentados a dizer os passageiros – tomaram seus lugares e envolveram-se muito bem nas suas mantas de viagem. As duas imensas velas foram içadas, e, sob o impulso do vento, o veículo seguiu sobre a neve endurecida a uma velocidade de quarenta milhas por hora.

A distância que separa o forte Kearney de Omaha é, em linha reta – a vôo de abelha, como dizem os americanos – de duzentas milhas quando muito. Se o vento se mantivesse, em cinco horas esta distância poderia ser coberta. Se nenhum incidente acontecesse, à uma da tarde o trenó deveria chegar a Omaha.


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Que travessia! Os viajantes, apertados uns contra os outros, não podiam conversar. O frio, aumentado pela velocidade, teria lhes cortado a palavra. O trenó deslizava tão ligeiro pela superfície da pradaria quanto uma embarcação pela superfície das águas – com o balanço de menos. Quando a brisa chegava varrendo o solo, parecia que o trenó ia ser levantado do solo por suas velas, vastas asas de imensa envergadura. Mudge conservava o veículo em linha reta, e com um movimento do leme, retificava os bordejos que o aparelho tendia a fazer. Ia-se com todo o pano. A vela triangular tinha sido desfraldada e não estava mais protegida pela brigantina. Um mastaréu da gávea foi guindado, e uma flecha, estendida ao vento, uniu sua força de impulsão à das outras velas. Não era possível avaliá-la, matematicamente, mas com certeza a velocidade do trenó não deveria ser menos de quarenta milhas por hora.

– Se nada se quebra, disse Mudge, chegaremos.

E Mudge tinha interesse em chegar no prazo estipulado, porque Mr. Fogg, fiel ao seu sistema, o tinha estimulado com uma boa gratificação.

A pradaria, que o trenó cortava em linha reta, era plana como um mar. Dir-se-ia um imenso tanque gelado. A rail-road que atende esta parte do território subia, do sudeste para nordeste, por Great Island, Columbus, cidade importante do Nebraska, Schuyler, Fremont, depois Omaha. Seguia durante todo seu percurso a margem direita do Platte River. O trenó, abreviando esta extensão, tomou a corda do arco descrito pela via férrea. Mudge não receava que o Platte River lhe embaraçasse o trajeto, no pequeno cotovelo que este rio faz adiante de Fremont, porque as suas águas estavam geladas. O caminho achava-se, pois, completamente livre de obstáculos, e Phileas Fogg só tinha duas coisas a temer: uma avaria no aparelho, uma mudança ou uma calmaria do vento.

Mas a brisa não abrandava. Pelo contrário. Soprava de vergar o mastro, que os tirantes de ferro aguentavam solidamente. Estes fios de metal, semelhantes às cordas de um instrumento, soavam como se algum arco os fizesse vibrar. O trenó voava em meio a uma harmonia plangente, de sonoridade muito particular.

– Estas cordas dão a quinta e a oitava, disse Mr. Fogg.

E estas foram as únicas palavras que pronunciou durante a viagem. Mrs. Aouda, cuidadosamente envolvida nas peles e mantas de viagem, estava, quanto era possível, abrigada do frio.

Quanto a Passepartout, a face vermelha como o disco solar quando se deita nas brumas, aspirava o ar penetrante. Com a reserva de imperturbável confiança que possuía, tinha voltado a ter esperanças. Em vez de chegarem de manhã em Nova York, chegariam à tarde, mas havia ainda algumas probabilidades que fosse antes da partida do paquete para Liverpool.

Passepartout tinha até mesmo tido ganas de apertar a mão do seu aliado Fix. Não se esquecia de que fora o inspetor que pessoalmente procurara o trenó de velas, e, portanto, o único meio que havia de chegar a Omaha em tempo útil. Mas, por um não se sabe qual pressentimento, manteve-se na sua reserva usual.

Uma coisa porém Passepartout nunca esqueceria, o sacrifício que Mr. Fogg tinha feito, sem hesitar, para arrancá-lo das mãos dos Siouxs. Nisso, Mr. Fogg tinha arriscado sua fortuna e sua vida... Não! seu servidor jamais esqueceria!

Enquanto cada um dos viajantes se entregava a tão diversas reflexões, o trenó voava sobre o imenso tapete de neve. Se passou por alguns creeks, afluentes ou sub-afluentes do Little Blue River, ninguém percebeu. Os campos e os cursos de água desapareciam sob uma brancura uniforme. A pradaria estava completamente deserta. Compreendida entre a Union Pacific road e o entroncamento que une Kearney a Saint Joseph, formava como que uma grande ilha desabitada. Nem uma vila, nem uma estação, nem mesmo um forte. De tempo em tempo, via-se passar como um relâmpago alguma árvore contorcida, cujo branco esqueleto se torneava sob a brisa. Por vezes, bandos de aves selvagens alçavam vôo. Às vezes, ainda, alguns lobos das pradarias, em alcatéias numerosas, magros, esfaimados, incitados por uma necessidade feroz, disputavam velocidade com o trenó. Então, Passepartout, revólver na mão, preparava-se para fazer fogo sobre os mais próximos. Se algum acidente tivesse detido o trenó, os viajantes, atacados por estes ferozes carniceiros, teriam corrido os maiores riscos. Mas o trenó aguentava firme, pegava a dianteira, e logo logo todo o bando uivador ficava para trás.


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Ao meio dia, Mudge reconheceu por alguns indícios, que passava pelo leito gelado do Platte River. Nada disse, mas já tinha a certeza de que, vinte milhas além, alcançaria a estação de Omaha.

E, com efeito, não tinha passado uma hora, e este guia hábil, largando o leme, se precipitou para as adriças e ferrou o pano, mas o trenó, levado pelo impulso do vento que recebera, correu ainda meia milha. Afinal parou, e Mudge, mostrando um ajuntamento de telhados branqueados pela neve, disse:

– Chegamos.

Chegados! Chegados, com efeito, a esta estação que, por meio de numerosos trens, está diariamente em comunicação com o leste dos Estados Unidos!

Passepartout e Fix saltaram para terra e sacudiram seus membros entorpecidos. Ajudaram Mr. Fogg e a jovem a descer do trenó. Phileas Fogg acertou as contas generosamente com Mudge, ao qual Passepartout apertou a mão, como a um amigo, e todos se precipitaram para a estação de Omaha.

É nesta importante cidade de Nebraska que acaba a estrada de ferro do Pacífico propriamente dita, que põe a bacia do Mississipi em comunicação com o grande oceano. Para se ir de Omaha a Chicago, a rail-road, sob o nome de “Chicago and Rock Island Railroad”, corre diretamente para leste servindo cinquenta estações.

Um trem direto estava prestes a partir. Phileas Fogg e os seus companheiros apenas tiveram tempo de se precipitar num vagão. Nada viram de Omaha, mas Passepartout confessou a si mesmo que não tinha motivos para se lastimar, porque não era para ver que estavam ali.

Com extrema rapidez, o trem passou pelo Estado de Iowa, por Council Bluffs, Des Moines, Iowa City. Durante a noite, atravessou o Mississipi em Davenport, e por Rock Island entrou no Illinois. No dia seguinte, 10, às quatro horas da tarde chegou a Chicago, já reconstruída das suas ruínas, e mais soberba que nunca sobre as margens do seu belo lago Michigan.

Noventa milhas separam Chicago de Nova York. Trens não faltavam em Chicago. Mr. Fogg passou imediatamente de um para outro. A elegante locomotiva da “Pittsburg, Fort Wayne e Chicago Railway” partiu a toda velocidade, como se compreendesse que o honrado gentleman não tinha tempo a perder. Atravessou como um relâmpago Indiana, Ohio, Pensilvânia, New Jersey, passando por cidades de nomes antiquados, em algumas das quais havia ruas e tramways, mas ainda não casas. Finalmente o Hudson apareceu, e, em 11 de dezembro, às onze e quinze da noite, o trem parou na estação, na margem direita do rio, diante do “pier” dos vapores da linha Cunard, também chamada de “Britsh and North American Royal Mail Steam Packet Co.”.

O China, com destino a Liverpool, tinha partido há quarenta e cinco minutos!

XXX - Em que Phileas Fogg simplesmente cumpre o seu dever

Três viajantes, inclusive Passepartout, haviam desaparecido. Teriam sido mortos na luta? Estariam prisioneiros dos selvagens? Ainda não se podia saber.

Os feridos eram numerosos, mas nenhum tinha sido atingido mortalmente. Um dos em estado mais grave era o coronel Proctor, que tinha combatido bravamente, e que uma bala na verilha derrubara. Foi transportado para a estação com os outros viajantes, cujo estado reclamava cuidados imediatos.

Mrs. Aouda estava salva. Phileas Fogg, que não se poupara, não tinha nem um arranhão. Fix estava ferido num braço, ferimento sem importância. Mas Passepartout faltava, e as lágrimas corriam dos olhos da jovem.

Já então todos os viajantes tinham saído do trem. As rodas dos vagões estavam manchadas de sangue. Dos cubos e dos raios pendiam informes postas de carne. Via-se a perder de vista na pradaria branca longos rastros avermelhados. Os últimos índios desapareciam então ao sul, pelos lados do Republican River.

Mr. Fogg, braços cruzados, permanecia imóvel. Tinha uma grave decisão a tomar. Mrs. Aouda, próxima dele, o contemplava sem proferir uma palavra... Ele compreendeu este olhar. Se o seu servidor estava prisioneiro, não deveria tudo arriscar para arrancá-lo dos índios?

– Vou achá-lo morto ou vivo, disse simplesmente para Mrs. Aouda.

– Ah! senhor... senhor Fogg! exclamou a jovem, agarrando as mãos do seu companheiro, que cobriu de lágrimas.

– Vivo! acrescentou Mr. Fogg, se não perdermos um minuto!

Com esta resolução Phileas Fogg sacrificava-se completamente. Acabara de pronunciar sua ruína. Um dia apenas de atraso o faria perder o paquete de Nova York. Sua aposta estava irrevogavelmente perdida. Mas diante deste pensamento: “É o meu dever”, não tinha hesitado.

O capitão que comandava o forte Kearney estava ali. Seus soldados – uns cem homens – tinham se posto na defensiva para o caso dos Sioux terem dirigido um ataque direto contra a estação.

– Senhor, disse Mr. Fogg ao capitão, três viajantes desapareceram.

– Mortos? perguntou o capitão.

– Mortos ou prisioneiros, respondeu Phileas Fogg. É desta incerteza que precisamos sair. Sua intenção é perseguir os Sioux?

Dificilmente, senhor, disse o capitão. Estes índios podem fugir para além do Arkansas! Não poderia abandonar o forte que me foi confiado.

– Senhor, retomou Phileas Fogg, trata-se da vida de três homens.

– Sem dúvida... mas posso arriscar a vida de cinquenta para salvar três?

– Não sei se pode, senhor, mas deve.

– Senhor, respondeu o capitão, ninguém aqui precisa me ensinar qual é o meu dever.

– Que seja, disse friamente Pbileas Fogg. Irei só!

– Só, senhor! exclamou Fix, que tinha se aproximado, ir só em perseguição dos índios!

– Quer então que eu deixe perecer esse infeliz, a quem todos os que estão aqui vivos devem a vida? Irei.

– Pois bem, não, não irá só! exclamou o capitão, comovido, apesar de tudo. Não! Tem um coração valente!... Trinta voluntários! acrescentou ele, voltando-se para os soldados.

Toda a companhia deu um passo à frente. O capitão só teve que escolher entre seus bravos. Trinta soldados foram designados, e um velho sargento se pôs à frente deles.

– Obrigado, capitão! disse Mr. Fogg.

– Permite-me acompanhá-lo? perguntou Fix ao gentleman.

– Faça o que achar melhor, senhor, respondeu Phileas Fogg. Mas se quer me fazer um favor, fique junto de Mrs. Aouda. Caso me aconteça alguma desgraça...

Uma palidez súbita invadiu o rosto do inspetor de polícia. Separar-se do homem que tinha seguido passo a passo e com tanta persistência! Deixá-lo aventurar-se assim naquele deserto! Fix olhou atentamente o gentleman, e, fosse como fosse, apesar das suas desconfianças, apesar do combate que travava interiormente, baixou os olhos diante daquele olhar calmo e sincero.

– Ficarei, disse.

Instantes depois, Mr. Fogg tinha apertado a mão da jovem; depois, após lhe ter entregue sua preciosa sacola de viagem, partiu com o sargento e sua pequena tropa.

Mas antes de partir, tinha dito aos soldados:

– Meus amigos, há mil libras para vós se salvarmos os prisioneiros.

Era meio dia e alguns minutos.

Mrs. Aouda tinha se retirado para um quarto da estação, e aí, sozinha, ficou aguardando, pensando em Phileas Fogg, em sua generosidade simples e grandiosa, em sua tranquila coragem. Mr. Fogg tinha sacrificado sua fortuna, e agora punha sua vida em perigo, tudo sem hesitação, por dever, sem frases. Phileas Fogg era um herói aos seus olhos.

O inspetor Fix, este, não pensava assim, e não podia conter sua agitação. Passeava febrilmente pela plataforma da estação. Por um momento subjugado, voltava a ser ele mesmo. Depois de Fogg partir, compreendia a tolice que tinha feito deixando-o partir. Como! o homem que tinha seguido ao redor do mundo, tinha consentido em separar-se dele! Sua índole voltava a conduzi-lo, se recriminava, se acusava, tratava a si mesmo como se fosse o comissário da polícia metropolitana admoestando um agente apanhado em flagrante delito de ingenuidade.

– Fui inepto! pensava. O outro por certo lhe disse quem eu era! Partiu, não volta mais! Onde pegá-lo agora? Mas como pude me deixar fascinar assim, eu, Fix, que tenho no bolso o seu mandado de prisão! Decididamente não passo de uma azêmula!

Assim raciocinava o inspetor de polícia, enquanto as horas se escoavam lentamente. Não sabia o que fazer. Às vezes tinha vontade de dizer tudo a Mrs. Aouda. Mas compreendia como seria recebido pela jovem. Que decisão tomar? Estava tentado a sair pelas pradarias brancas, em perseguição de Fogg! Não lhe parecia impossível reencontrá-lo. Os passos do destacamento estavam ainda impressos na neve!... Mas logo, sob uma nova camada, todas as pegadas desapareceriam.

Então o desânimo apossou-se de Fix. Experimentou como que um invencível desejo de abandonar a partida. Ora, precisamente, esta oportunidade de deixar a estação de Kearney e de continuar a viagem, tão fecunda em transtornos, lhe foi oferecida.

Com efeito, perto das duas depois do meio dia, enquanto a neve caía em grandes flocos, ouviram-se longos apitos que vinham do leste. Uma enorme sombra, precedida por um clarão amarelado, avançava lentamente, consideravelmente aumentada pelas brumas, que lhe davam um aspecto fantástico.

Contudo não se esperava ainda nenhum trem vindo de leste. O socorro pedido pelo telégrafo não poderia chegar tão cedo, e o trem de Omaha para São Francisco só deveria passar no dia seguinte. – Logo se soube o que acontecia.


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Esta locomotiva que andava com pouco vapor, soltando grandes apitos, era aquela que, depois de ter sido desprendida do trem, tinha continuado sua rota com velocidade vertiginosa, levando o caldereiro e o maquinista inanimados. Tinha corrido sobre os rails por diversas milhas; depois, o fogo tinha amortecido, por falta de combustível; o vapor perdera a força, e uma hora depois, diminuindo pouco a pouco sua marcha, a máquina parara afinal vinte milhas depois da estação de Kearney.

Nem o maquinista nem o fogueiro tinham sucumbido, e, depois de um desmaio bastante prolongado, tinham voltado a si.

A máquina estava então parada. Quando se viu no deserto, a locomotiva só, sem vagões atrás, o maquinista compreendeu o que tinha ocorrido. Como a locomotiva tinha se desprendido do trem, não pôde adivinhar, mas não tinha nenhuma dúvida de que o trem, tendo ficado para trás, estava em perigo.

O maquinista nem hesitou sobre o que deveria fazer. Continuar na direção de Omaha era prudente; voltar para o trem, que os índios talvez ainda pilhassem, era perigoso... Que importa! Pás de carvão e lenha foram lançadas no fogo da caldeira, o fogo se reanimou, a pressão aumentou de novo, e, pelas duas depois do meio dia, a máquina voltava para trás em direção da estação de Kearney. Era ela que apitava na bruma.

Foi uma grande satisfação para os viajantes, quando viram a locomotiva pôr-se na frente do trem. Iam poder continuar a viagem tão desgraçadamente interronpida.

À chegada da máquina, Mrs. Aouda tinha saído da estação, e dirigindo-se ao condutor:

– Vai partir? perguntou.

– Em instantes, madame.

– Mas os prisioneiros... nossos desafortunados companheiros...

– Não posso interromper o serviço, respondeu o condutor. Já temos três horas de atraso.

– E quando passará o outro trem que vem de São Francisco?

– Amanhã à noite, madame.

– Amanhã à noite! mas será muito tarde. É preciso esperar...

– É impossível, respondeu o condutor. Se quiser partir, suba.

– Não partirei, respondeu a jovem. Fix tinha escutado esta conversa. Alguns instantes antes, quando todos os meios de locomoção lhe faltavam, estava resolvido a deixar Kearney, e agora que o trem se achava ali, prestes a partir, que só tinha de retomar o seu lugar no vagão, uma força irresistível o prendia no chão. A plataforma da estação lhe queimava os pés, e ele não podia levantá-los. A luta recomeçou dentro dele. A cólera do insucesso o sufocava. Queria lutar até o fim.

Entrementes os viajantes e alguns feridos – entre outros o coronel Proctor, cujo estado era grave – tinham tomado lugar nos vagões. Ouvia-se o ruído da caldeira em ebulição, e o vapor escapava pelas válvulas. O maquinista apitou, o trem se pôs em movimento, e desapareceu bem depressa, misturando sua fumaça aos turbilhões de neve.

O agente Fix tinha ficado.

Algumas horas se escoaram. O tempo estava muito mau, o frio intenso. Fix, sentado sobre um banco na estação, permanecia imóvel. Podia-se supor que dormia. Mrs. Aouda, apesar da ventania, deixava a cada instante o quarto que tinha sido colocado à sua disposição. Vinha à extremidade da plataforma, procurando ver através da tempestade de neve, querendo penetrar com o olhar esta bruma que reduzia o horizonte à sua volta, tentando escutar se algum barulho se fazia ouvir. Mas nada. Voltava a entrar, toda transida, para voltar momentos depois, e sempre inutilmente.

Entardeceu. O pequeno destacamento não estava ainda de volta. Onde estaria neste momento? Teria alcançado os índios? Teria havido luta, ou os soldados, perdidos no nevoeiro, erravam ao acaso? O capitão do forte Kearney estava muito inquieto embora não quisesse deixar transparecer sua inquietude.

Anoiteceu, a neve tombou menos abundantemente, mas a intensidade do frio aumentou. O olhar mais intrépido não teria enfrentado sem receio esta obscura imensidão. Um silêncio absoluto reinava na pradaria. Nem o vôo de um pássaro, nem a passagem de alguma fera perturbava a calma infinita.

Durante toda a noite, Mrs. Aouda, o espírito cheio de pressentimentos sinistros, o coração repleto de angústias, vagueou pela orla da campina. Sua imaginação a levava para longe e lhe mostrava mil perigos. O que sofreu durante estas longas horas não seria possível exprimir.

Fix estava sempre imóvel no mesmo lugar, mas, também ele, não dormia. Num dado momento, um homem tinha se aproximado dele, até falou com ele, mas o agente o despachou, depois de ter respondido às suas palavras com um sinal negativo.

A noite passou. Ao alvorecer, o disco meio apagado do sol ergueu-se sobre um horizonte nublado. Entretanto o olhar podia alcançar até duas milhas de distância. Tinha sido para o sul que Phileas Fogg e o destacamento se haviam dirigido... O sul estava absolutamente deserto. Eram então sete horas da manhã.

O capitão, extremamente preocupado, não sabia o que fazer. Deveria enviar um segundo destacamento em socorro do primeiro? Deveria sacrificar novos homens com tão poucas probabilidades de salvar os que já tinham sido sacrificados antes? Mas sua hesitação não durou, e com um gesto, chamando um dos seus ajudantes, deu-lhe ordem de fazer um reconhecimento ao sul – quando se ouviram tiros. Seria um sinal? Os soldados precipitaram-se para fora do forte, e a meia milha de distância avistaram um destacamento que voltava em boa ordem.

Mr. Fogg vinha à frente, junto dele Passepartout e os dois outros passageiros, resgatados das mãos dos Sioux.

Tinha havido combate dez milhas ao sul de Kearney. Poucos instantes antes da chegada do destacamento, Passepartout e seus dois companheiros já lutavam contra seus guardiãos, e o francês tinha derrubado três com seus socos, quando seu patrão e os soldados se precipitaram em seu socorro.


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Todos, salvadores e salvados, foram acolhidos com brados do alegria, e Phileas Fogg distribuiu aos soldados a gratificação que lhes tinha prometido, enquanto Passepartout repetia consigo, não sem alguma razão:

– Decididamente, estou saindo caro para meu patrão!

Fix, sem proferir uma palavra, contemplava Mr. Fogg, e seria difícil analisar as impressões que se combatiam nele naquele momento. Quanto a Mrs. Aouda, tinha pego a mão do gentleman, e a apertava nas suas, sem poder pronunciar uma palavra!

Passepartout, desde que chegara, estivera procurando o trem na estação. Julgava que o iria encontrar, pronto para partir para Omaha, e esperava que se pudesse recuperar o tempo perdido.

– O trem! o trem! gritava.

– Partiu, respondeu Fix.

– E o trem seguinte, quando passa? perguntou Phileas Fogg.

– Só de tarde.

– Ah! respondeu simplesmente o impassível gentleman.

XXIX - Onde se fará a narração de diversos incidentes, que só acontecem nas estradas de ferro da União

Naquela mesma noite, o trem prosseguindo sua rota sem obstáculos, ultrapassava o Fort Saunders, transpunha o desfiladeiro do Cheyenne, e chegava ao de Evans. Neste lugar, a rail-road atingiu o ponto mais alto do dia, ou seja oito mil noventa e um pés acima do nível do mar. Os viajantes só tinham agora que descer até o Atlântico sobre essas planícies sem limites, niveladas pela natureza.

Lá se encontrava sobre o “grande trunk”, o entroncamento de Denver City, a principal cidade do Colorado. Este território é rico em minas de ouro e prata, e mais de cinquenta mil habitantes aí já fixaram moradia.

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Neste momento, mil trezentas e oitenta e duas milhas tinham sido feitas desde São Francisco, em três dias e três noites. Quatro dias e quatro noites, de acordo com todas as previsões, deveriam bastar para o trem alcançar Nova York. Phileas Fogg se mantinha pois dentro dos intervalos regulamentares.

Durante a noite, deixaram à esquerda Camp Walbach. O Lodge Pole Creek corria paralelamente à via, seguindo a fronteira retilínea comum aos Estados de Wyoming e do Colorado. Às onze horas entraram no Nebraska, passaram perto de Sedgwick, e chegaram a Julesburg, situado na margem sul do Platte River.

Foi neste ponto que se fez a inauguração da Union Pacific Road, em 23 de outubro de 1887, da qual o engenheiro responsável foi o general J. M. Dodge. Ali pararam as duas potentes locomotivas, rebocando os nove vagões dos convidados, entre os quais figurava o vice-presidente, Mr. Thomas C. Durant; ali reboaram as aclamações; ali os Sioux e os Pawnies deram o espetáculo de uma pequena guerra indígena; ali, os fogos de artifício arderam; ali, finalmente, se publicou, em uma gráfica portátil, o primeiro número do Railway Pioneer. Assim foi celebrada a inauguração desta grande estrada de ferro, instrumento de progresso e de civilização, lançado através do deserto, e destinado a ligar entre si vilas e cidades que não existiam ainda. O apito da locomotiva, mais potente que a lira de Amphion, iria logo fazê-las brotar no solo americano.

Às oito horas da manhã, o forte McPherson tinha sido deixado para trás. Trezentas e cinquenta e sete milhas separam este ponto de Omaha. A via férrea seguia, sobre sua margem esquerda, as caprichosas sinuosidades do braço sul do Platte River. Às nove horas, chegaram à importante cidade de North Platte, edificada entre os dois braços do grande curso de água, que se reúnem em torno dela para formar uma só artéria – afluente importante cujas águas se confundem com as do Missouri, um pouco acima de Omaha.

O centésimo primeiro meridiano estava franqueado.

Mr. Fogg e seus parceiros tinham recomeçado o jogo. Nenhum deles se queixava da demora da viagem – nem mesmo o morto. Fix tinha começado ganhando alguns guinéus, que estava em vias de perder, mas nem por isso se mostrava menos entusiasmado que Mr. Fogg. Durante esta manhã, a sorte favoreceu bastante este gentleman. Os trunfos e as cartas de maior valor choviam em suas mãos. Em certo momento, depois de ter combinado um lance audacioso, preparava-se para jogar espadas, quando atrás do banco ouviu uma voz que dizia:

– Se fosse eu, jogava ouros...


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Mr. Fogg, Mrs. Aouda, Fix levantaram a cabeça. O coronel Proctor estava perto deles.

Stamp W. Proctor e Phileas Fogg reconheceram-se no ato.

– Ah! por aqui, senhor inglês, exclamou o coronel, é o senhor que queria jogar espadas!

– E jogo, respondeu friamente Phileas Fogg, deitando à mesa um dez deste naipe.

– Pois bem, eu quero que sejam ouros, replicou o coronel Proctor com voz irritada.

E fez um gesto para levantar a carta jogada, acrescentando:

– Não entende nada deste jogo.

– Talvez seja mais hábil em outro, disse Phileas Fogg, que se levantou.

– Só depende de si, filho de John Bull! replicou o grosseiro personagem.

Mrs. Aouda tinha ficado pálida. Todo seu sangue refluiu para o coração. Tinha agarrado o braço de Phileas Fogg, que a repeliu docemente. Passepartout estava prestes a se lançar sobre o americano, que olhava seu adversário com o mais insultante dos olhares. Mas Fix tinha se levantado, e, indo ao coronel Proctor, lhe disse:

– Esquece-se de que é comigo a questão, senhor, comigo a quem o senhor, não só injuriou, mas agrediu!

– Senhor Fix, disse Phileas Fogg, peço-lhe perdão, mas isto só diz respeito a mim. Alegando que eu estava errado jogando espadas, o coronel me fez uma nova injúria, e há de dar-me uma satisfação.

– Quando e onde quiser, respondeu o americano, e com a arma que lhe agradar!

Mrs. Aouda em vão procurou reter Mr. Fogg. O inspetor tentou inutilmente retomar a querela para si. Passepartout queria atirar o coronel pela porta, mas um gesto do patrão o conteve. Phileas Fogg deixou o vagão, e o americano seguiu-o pelo passadiço.

– Senhor, disse Mr. Fogg ao seu adversário, tenho muita pressa em voltar para a Europa, e qualquer atraso prejudicaria muito meus interesses.

– E daí? O que é que eu tenho com isso? respondeu o coronel Proctor.

– Senhor, retomou muito polidamente Mr. Fogg, depois do nosso encontro em São Francisco, eu tinha feito planos de vir reencontrá-lo na América, assim que tivesse concluído os negócios que me chamam ao velho continente.

– Verdade?

– Quer marcar o encontro para daqui a seis meses?

– Porque não daqui a seis anos?

– Disse seis meses, respondeu Mr. Fogg, e serei pontual.

– Desculpas! Só desculpas! exclamou Stamp W. Proctor. Agora ou nunca.

– Pois que seja, respondeu Mr. Fogg. Vai para Nova York?

– Não.

– Chicago?

– Não.

– Omaha?

– Pouco importa! Conhece Plum Creek?

– Não, respondeu Mr. Fogg.

– É a próxima estação. O trem estará lá em uma hora. Estacionará por dez minutos. Em dez minutos, podemos trocar alguns tiros de revólver.

– Que seja, respondeu Mr. Fogg. Deter-me-ei em Plum Creek.

– E creio que vai ficar por lá! acrescentou o americano com uma insolência sem igual.

– Quem sabe, senhor? exclamou Mr. Fogg, e voltou ao seu vagão, tão frio como de costume.

Lá, o gentleman começou por sossegar Mrs. Aouda, dizendo-lhe que os fanfarrões não eram nunca para recear. Depois pediu a Fix que lhe servisse de testemunha no duelo que iria travar. Fix não podia recusar, e Phileas Fogg recomeçou tranquilamente o jogo interrompido, jogando espadas com a maior calma.

Às onze horas, o apito da locomotiva anunciou a chegada à estação de Plum Creek. Mr. Fogg se levantou, e, seguido de Fix, colocou-se sobre o passadiço. Passepartout o acompanhava, levando um par de revólveres. Mrs. Aouda tinha ficado no vagão, pálida como uma morta.

Neste momento, a porta do outro vagão se abriu, e o coronel Proctor apareceu igualmente sobre o passadiço, seguido da sua testemunha, um yankee da sua têmpera. Mas no instante em que os dois adversários iam descer para a via, o condutor apareceu e gritou-lhes:

– Não podem descer, senhores.

– E por quê? perguntou o coronel.

– Estamos com vinte minutos de atraso, e o trem não pára.

– Mas eu tenho de me bater com este senhor.

– Lamento, respondeu o empregado; mas partimos imediatamente. O sino já está tocando!

Efetivamente tocava, e o trem voltou a se pôr a caminho.

– Estou realmente desolado, senhores, disse então o condutor. Em qualquer outra circunstância, eu poderia ter concedido. Mas, afinal, já que não têm tempo de se baterem aqui, quem os impede de se baterem no caminho?

– Isso talvez não convenha a este senhor! disse o coronel Proctor com ar gozador.

– Convém-me perfeitamente, respondeu Phileas Fogg.

– Pois é, decididamente, estamos na América! pensou Passepartout, e o condutor do trem é um gentleman de primeira!

E dizendo isto seguiu seu patrão.

Os dois adversários, suas testemunhas, precedidos pelo condutor, dirigiram-se, passando de um vagão para outro, à traseira do trem. O último vagão só estava ocupado por uma dezena de viajantes. O condutor perguntou-lhes se poderiam deixar o lugar livre para os dois que tinham uma questão de honra a resolver.

– Como! Mas os viajantes estavam muito felizes em serem agradáveis aos dois gentleman e se retiraram sobre os passadiços.

Este vagão, de uns cinquenta pés de comprimento, prestava-se muito convenientemente à circunstância. Os dois adversários podiam caminhar um para o outro entre os bancos e dispararem à vontade. Nunca houve duelo mais fácil de regrar. Mr. Fugg e o coronel Proctor, munido cada um com dois revólveres de seis tiros, entraram no vagão. Suas testemunhas, que ficaram do lado de fora, os fecharam lá dentro. Ao primeiro apito da locomotiva deviam começar o fogo... Depois, passados dez minutos, retirar-se-ia do vagão o que tivesse sobrado dos dois gentleman.

Nada mais simples na verdade. Era mesmo tão simples, que Fíx e Passepartout sentiam o coração bater fortemente.

Esperava-se, pois, o apito convencionado, quando subitamente gritos selvagens ressoaram. Detonações os acompanharam, mas não vinham do vagão destinado aos duelistas. Estas detonações se prolongavam, ao contrário, até a frente e pelas laterais do trem. Gritos de terror se faziam ouvir no interior do comboio.

O coronel Proctor e Mr. Fogg, revólver em punho, saíram logo do vagão e precipitaram-se para a frente, onde soavam mais estrondosamente as detonações e os gritos.

Tinham compreendido que o trem estava sendo atacado por um bando de Siouxs.

Estes ferozes índios não estavam fazendo sua estréia, e mais de uma vez já tinham detido comboios. Segundo seu costume, sem esperar a parada do trem, saltando sobre os estribos em número de uma centena, tinham escalado os vagões como faz um clown de um cavalo a galope.

Os Sioux estavam munidos de rifles. Daí as detonações a que os viajantes, quase todos armados, respondiam com tiros de revólver. Logo no começo, os índios tinham se precipitado para a máquina. O maquinista e o fogueiro tinham sido quase prostrados a golpes de macete. Um chefe sioux, querendo parar o trem, mas não sabendo manejar a manivela do regulador, tinha aberto mais a entrada do vapor em lugar de fechar e a locomotiva, impelida, corria com uma velocidade assustadora.


Fonte: http://jv.gilead.org.il/rpaul/

Ao mesmo tempo, os Sioux tinham invadido os vagões, corriam como macacos em fúria por cima da capota do trem, arrombavam as portinholas e lutavam corpo a corpo com os viajantes. Para fora do vagão das bagagens, arrombado e saqueado, os fardos eram arremessados para a via. Gritos e disparos não cessavam.

Entretanto os viajantes defendiam-se corajosamente. Alguns vagões, barricados, enfrentavam um cerco, como verdadeiros fortes ambulantes, levados a cem milhas por hora.

Desde o começo do ataque, Mrs. Aouda tinha se comportado corajosamente. Revólver em punho, defendia-se heroicamente, atirando através dos vidros quebrados, quando um selvagem passava por sua mira. Uns vinte Sioux, mortalmente feridos, tinham tombado na via, e as rodas dos vagões esmagavam como vermes os que deslizavam sobre os rails do alto dos passadiços.

Diversos viajantes, gravemente atingidos pelas balas ou pelas clavas, jaziam sobre os bancos.

Entretanto era preciso parar. Esta luta já durava dez minutos, e terminaria em favor dos Sioux certamente se o trem não parasse. Com efeito, a estação do forte Kearney não estava a duas milhas de distância. Lá havia um posto americano; mas passado este posto, entre o forte Kearney e a estação seguinte, os Sioux seriam senhores do trem.

O condutor lutava ao lado de Mr. Fogg, quando uma bala o derrubou. Ao cair, gritou:

– Estamos perdidos, se o trem não parar antes de cinco minutos!

– Vai parar! disse Mr. Phileas Fogg, que queria se lançar para fora do vagão.

– Fique, senhor! lhe gritou Passepartout. Deixe comigo!

Phileas Fogg não teve tempo de deter o corajoso rapaz, que, abrindo a portinhola sem ser visto pelos índios, conseguiu deslizar para baixo do vagão. E então, enquanto a luta continuava, enquanto as balas se cruzavam sobre sua cabeça, reencontrando sua agilidade de clown, metendo-se sob os vagões, agarrando-se às correntes, valendo-se das alavancas dos freios de cabos da carroceria, pulando de um carro para o outro com uma facilidade maravilhosa, chegou à parte dianteira do trem. Não tinha sido visto, não poderia ter sido visto.

Fonte: http://jv.gilead.org.il/rpaul/

Ali, suspenso por uma mão entre o vagão de bagagem e o tender, com a outra desenganchou as correntes de segurança; mas em virtude da tração desenvolvida, nunca poderia ter desaparafusado a barra de atrelagem, se um abalo da máquina não tivesse feito saltar esta barra, e o trem, solto, foi ficando pouco a pouco para trás, enquanto a locomotiva fugia com velocidade crescente.

Levado pela força adquirida, o trem ainda rolou por alguns minutos, mas os freios foram acionados no interior dos vagões, e o comboio finalmente parou, a menos de cem passos da estação de Kearney.

Os soldados do forte, atraídos pelos tiros, acudiram logo. Os Sioux não os esperavam, e, antes que o trem parasse completamente, todo o bando tinha se posto em fuga.

Mas quando os viajantes se contaram na plataforma da estação, perceberam que faltavam muitos à chamada, e entre eles o corajoso francês, cuja dedicação acabara de os salvar.

XXVIII - Em que Passepartout não consegue que ouçam voz da razão

O trem, saindo de Great Salt Lake e da estação de Ogden, subiu durante uma hora para o norte, até Weber River, tendo percorrido quase novecentas milhas desde que partira de São Francisco. A partir deste ponto, retomou a direção do leste, através do maciço acidentado dos montes Wahsatch. É nesta parte do território, compreendida entre as montanhas Rochosas propriamente ditas, que os engenheiros americanos lutaram com as maiores dificuldades. Por isso também que nesta porção do trajeto a subvenção do governo subiu para quarenta e oito mil dólares por milha, enquanto tinha sido de dezesseis mil dólares na planície; mas os engenheiros, como já foi dito, não violentaram a natureza, usaram de astúcia com ela, contornando as dificuldades, e para atingir a grande bacia, apenas um túnel, com quatorze mil pés de extensão, foi furado em todo o percurso da rail-road.

Era no lago Salgado mesmo que a estrada de ferro tinha atingido até então sua maior cota de altitute. Desde este ponto, seu perfil descrevia uma curva muito alongada, abaixando-se para o vale do Bitter Creek, para subir até ao ponto onde se dividem as águas do Atlântico e do Pacífico. Os rios eram numerosos nesta região montanhosa. Foi necessário franquear sobre pequenas pontes o Muddy, o Green e outros. Passepartout ia ficando mais impaciente à medida em que se aproximava o fim da viagem. Mas Fix, por sua vez, teria desejado que já tivessem saído desta difícil região. Receava as demoras, acreditava em acidentes, e tinha mais pressa do que o próprio Phileas Fogg para pôr os pés em terra inglesa.

Às dez da noite, o trem parou na estação de Fort Bridger, que deixou quase imediatamente, e, vinte mil milhas mais adiante, entrou no estado de Wyoming – o antigo Dakota – seguindo todo o vale do Bitter Creek, onde se escoa uma parte das águas que formam o sistema hidrográfico do Colorado.

No dia seguinte, 7 de dezembro, houve uma parada de quarto de hora na estação de Green River. A neve tinha caído durante a noite em abundância, mas, misturada com a chuva, e meio derretida, não podia estorvar a marcha do trem. Entretanto, este mau tempo não deixou de inquietar Passepartout, porque a acumulação das neves, atolando as rodas dos vagões, haveria certamente de comprometer a viagem.

– Na verdade, que idéia, dizia-se, meu patrão teve de viajar no inverno! Não poderia ter esperado o verão para aumentar suas possibilidades de êxito?

Mas, neste momento em que o honesto rapaz só se preocupava com o estado do céu e com a queda da temperatura, Mrs. Aouda experimentava receios mais sérios, que provinham de causa bem diversa.

Com efeito, alguns viajantes tinham descido do vagão, e passeavam pela plataforma da estação de Green River, esperando a partida do trem. Ora, pelo vidro, a jovem reconheceu entre eles o coronel Stamp W. Proctor, o americano que tinha se comportado tão grosseiramente com Phileas Fogg durante o meeting de São Francisco. Mrs. Aouda, não querendo ser vista, recuou.

Este fato impressionou extremamente a jovem. Ela tinha se afeiçoado ao homem que, friamente que fosse, lhe dava todos os dias provas da mais absoluta dedicação. Não compreendia, sem dúvida, toda a profundidade do sentimento que lhe inspirava seu salvador, e a este sentimento ainda dava o nome de reconhecimento, mas, sem que soubesse, era mais que isso. Assim seu coração saltou, quando reconheceu o grosseiro personagem a quem Mr. Fogg queria cedo ou tarde pedir uma explicação por sua conduta. Evidentemente, era apenas o acaso que tinha trazido a este trem o coronel Proctor, mas, fosse como fosse, ele estava ali, e era preciso impedir a todo o custo que Phileas Fogg avistasse seu adversário.

Mrs. Aouda, quando o trem se pôs novamente em movimento, aproveitou um momento em que Mr. Fogg dormitava, para colocar Fix e Passepartout a par da situação.

– O tal do Proctor está no trem! exclamou Fix. Pois bem, tenha certeza, madame, antes de se bater com o senhor... com Mr. Fogg, terá de bater-se comigo! Parece-me que, em tudo isto, fui eu quem recebeu os mais graves insultos!

– E, além disso, acrescentou Passepartout, eu me encarrego dele, por mais coronel que seja.

– Senhor Fix, retomou Mrs. Aouda, Mr. Fogg não deixará que ninguém se vingue por ele. É homem, como disse, de voltar à América para procurar seu ofensor. Se, portanto, vê o coronel, não vamos poder impedir um duelo, que pode ter deploráveis resultados. É preciso portanto que ele não o veja.

– Tem razão, madame, respondeu Fix, um duelo poderia pôr tudo a perder. Vencedor ou vencido, Mr. Fogg demorar-se-ia, e...

– E, acrescentou Passepartout, isso faria o jogo dos gentleman do Reform Club. Em quatro dias estaremos em Nova York! Pois bem, se durante quatro dias meu patrão não sair do seu vagão, podemos esperar que o acaso não o ponha cara a cara com este maldito americano, que Deus confunda! Ora, saberemos impedir...

A conversa foi suspensa. Mr. Fogg tinha acordado, e contemplava a campina pelo vidro rajado de neve. Mais tarde, e sem ser ouvido por seu patrão nem por Mrs. Aouda, Passepartout disse ao inspetor de polícia:

– O senhor, realmente, se bateria por ele?

– Farei tudo para levá-lo vivo para a Europa! respondeu simplesmente Fix, em um tom que denotava uma vontade implacável.

Passepartout sentiu um arrepio correr por todo o corpo, mas suas convicções a respeito do patrão não fraquejaram.

E agora, haveria algum meio de reter Mr. Fogg no seu compartimento para prevenir qualquer encontro entre o coronel e ele? Não deveria ser difícil, o gentleman sendo naturalmente pouco dado aos movimentos e pouco curioso. Em todo caso, o agente de polícia julgou ter descoberto esse meio, porque momentos depois dizia a Phileas Fogg:

– São longas e lentas horas, senhor, estas que se passa assim na estrada de ferro.

– Com efeito, respondeu o gentleman, mas elas passam.

– Nos paquetes, retomou o inspetor, não tinha o hábito de jogar uíste?

– Sim, respondeu Phileas Fogg, mas aqui seria difícil. Não tenho nem cartas nem parceiros.

– Oh! as cartas, podemos comprá-las. Vende-se de tudo nos vagões americanos. Quanto aos parceiros, se, por acaso, madame...

– Certamente, senhor, respondeu animadamente a jovem, sei jogar uíste. Faz parte da educação inglesa.

– E eu, retomou Fix, tenho algumas pretenções de jogar bem esse jogo. Ora, nós três e um morto...

– Como quiser, senhor, respondeu Phileas Fogg, encantado em retomar seu jogo favorito – mesmo numa estrada de ferro.

Passepartout foi despachado à procura do stewart e voltou pouco depois com dois baralhos completos, fichas, tentos, e um tabuleiro recoberto de pano. Não faltava nada. O jogo começou. Mrs. Aouda sabia suficientemente o uíste, e até recebeu alguns cumprimentos do severo Phileas Fogg. Quanto ao inspetor, era simplesmente excelente jogador, e digno de sentar-se à frente do gentleman.

– Agora, disse consigo Passepartout, nós o temos seguro. Não se mexe mais!

Às onze da manhã, o trem tinha atingido o ponto onde se dividem as águas dos dois oceanos. Era em Bridger Pass, a uma altura de sete mil quinhentos e oitenta e quatro pés ingleses acima do nível do mar, um dos pontos mais altos do traçado da estrada em sua passagem pelas montanhas Rochosas. Quase duzentas milhas mais adiante, os viajantes achar-se-iam finalmente sobre as extensas pradarias que se estendem até o Atlântico, e que a natureza tornara tão propícias para o estabelecimento de uma via férrea.

Sobre a vertente da bacia atlântica se desenvolviam já os primeiros rios, afluentes e sub-afluents do North Platte River. Todo o horizonte do norte e do leste estava coberto pela imensa cortina semi-circular que forma a porção setentrional das Rocky Mountains, dominada pelo pico de Laramie. Entre esta curvatura e a estrada de ferro estendiam-se vastas planícies abundantemente regadas. À direita da linha férrea sobrepõem-se as primeiras rampas do maciço montanhoso que se arredonda ao sul até às nascentes do rio Arkansas, um dos grandes tributários do Missouri.

Ao meio dia e meia, os viajantes entreviram por instantes o forte Halleck, que comanda esta região. Ainda algumas horas e a travessia das Montanhas Rochosas estaria completa. Podia-se pois esperar que nenhum acidente sinalizaria a passagem do trem por esta difícil região. A neve cessara de cair. O tempo tornara-se frio e seco. Grandes pássaros, assustados pela locomotiva, fugiam ao longe. Nenhuma fera, urso ou lobo, se mostrava na planície. Era o deserto em sua imensa nudez.

Depois de um almoço bastante confortável, servido no próprio vagão, Mr. Fogg e os seus parceiros recomeçavam o interminável uíste, quando violentos apitos se fizeram ouvir. O trem parou.

Passepartout colocou a cabeça para fora e não viu nada que motivasse a parada. Não havia nenhuma estação à vista.

Mrs. Aouda e Fix por um instante recearam que Mr. Fogg pensasse em descer para a via. Mas o gentleman contentou- se em dizer ao criado:

– Veja o que é.

Passepartout saltou para fora do vagão. Uns quarenta passageiros tinham já abandonado os seus lugares, entre eles o coronel Stamp W. Proctor.

O trem tinha parado por causa de um sinal vermelho que impedia a passagem. O maquinista e o condutor, tendo descido, discutiam acaloradamente com um guarda ferroviário, que o chefe de estação de Medicine Bow, a próxima estação, tinha enviado ao encontro do trem. Viajantes tinham-se aproximado e participavam da discussão – entre eles achava-se o mencionado coronel Proctor, com a sua voz alta e seus gestos imperiosos.

Passepartout, tendo se unido ao grupo, ouviu o guarda-ferroviário dizer:

– Não! não há meio de passar! A ponte de Medicine Bow está aluída e não suportaria o peso do trem.

A ponte, de que falavam, era uma ponte pênsil lançada sobre um desfiladeiro, a uma milha de distância do lugar onde o trem tinha parado. No dizer do guarda, ameaçava ruir, muitos dos fios estavam rompidos, e era impossível arriscar sua travessia. O guarda não exagerava de modo algum afirmando que não se poderia passar. E além disso, com os hábitos negligentes dos americanos, pode-se dizer que, quando eles se põem a ser prudentes, é loucura não o ser.

Passepartout, não se atrevendo a ir avisar o seu patrão, escutava, os dentes cerrados, imóvel como uma estátua.

– Ora! bradava o coronel Proctor, não vamos, imagino, ficar aqui a deitar raízes na neve!

– Coronel, respondeu o condutor, telegrafamos para a estação de Omaha pedindo um trem, mas não é provável que chegue a Medicine Bow antes de seis horas.

– Seis horas! exclamou Passepartout.

– Sem dúvida, respondeu o condutor. Além do mais, esse tempo nos será necessário para chegar à estação a pé.

– A pé! exclamaram todos os viajantes.

– Mas a que distância fica essa estação? perguntou um deles ao condutor.

– A doze milhas, do outro lado do rio.

– Doze milhas na neve! exclamou Stamp W. Proctor.

O coronel soltou um monte de pragas, queixando-se da companhia, queixando-se do condutor; e Passepartout, furioso, não estava longe de fazer-lhe coro. Havia aí um obstáculo material contra o qual nada podiam, desta vez, todas as bank-notes de seu patrão.

E tem mais, o desapontamento era geral entre os viajantes, que, sem contar o atraso, se viam obrigados a andar quinze milhas através da planície coberta de neve. Por isso levantou-se logo um borburinho, exclamações, vociferações, que teriam certamente atraído a atenção de Phileas Fogg, se o gentleman não estivesse tão absorto em seu jogo.

Entretanto, Passepartout achou que deveria preveni-lo, e, cabeça baixa, dirigia-se para o vagão, quando o maquinista do trem – um verdadeiro yankee chamado Forster – elevando a voz, disse:

– Senhores, talvez haja um meio de passar.

– Sobre a ponte? respondeu um viajante.

– Sobre a ponte.

– Com nosso trem? perguntou o coronel.

– Com nosso trem.

Passepartout tinha parado, e devorava as palavras do maquinista.

– Mas a ponte ameaça ruir! retomou o condutor.

– Não importa, respondeu Forster. Creio que lançando o trem com sua máxima velocidade, temos algumas chances de passar.

– Diabo! disse Passepartout.

Mas um certo número de viajantes tinha ficado imediatamente seduzido pela proposta. Ela agradava particularmente ao coronel Proctor. Este célebro esquentado achava a coisa muito factível. Lembrou mesmo que engenheiros tinham tido a idéia de passar os rios “sem pontes” com trens rígidos lançados a toda velocidade, etc. E, afinal, todos os interessados na questão se colocaram do lado do maquinista.

– Temos cinquenta probabilidades de passar, dizia um.

– Sessenta, dizia outro.

– Oitenta!... noventa sobre cem!

Passepartout estava aturdido, apesar de se sentir disposto a tentar tudo para fazer a passagem do Medicine Creek, mas a tentativa parecia-lhe um pouco demais “americana”.

– Além disso, pensou, há uma coisa bem mais simples, e esta gente nem sequer pensa nela!...

– Senhor, disse a um dos viajantes, o meio proposto pelo maquinista me parece um pouco arrojado, mas...

– Oitenta probabilidades! respondeu o viajante, que lhe virou as costas.

– Bem sei, respondeu Passepartout dirigindo-se a um outro gentleman, mas uma simples reflexão...

– Nada de reflexão, é inútil! respondeu o americano encolhendo os ombros, o maquinista afirma que passará!

– Sem dúvida, retomou Passepartout, passsará, mas seria talvez mais prudente...

– O que! prudente! exclamou o coronel Proctor, a quem esta palavra, ouvida casualmente, fez dar um pulo. A toda a velocidade, é o que se diz! Compreende? A toda velocidade!

– Eu sei... eu compreendo... repetia Passepartout, a quem ninguém deixava concluir sua frase, mas seria, não digo mais prudente, porque esta palavra desagrada, pelo menos mais natural...

– Quê? o quê? Que quer dizer com esse natural?... exclamaram de todos os lados.

O pobre moço já não sabia quem poderia ouvi-lo.

– Tem medo? perguntou o coronel Proctor.

– Eu! medo! exclamou Passepartout. Bem, que seja. Vou mostrar a esta gente que um francês pode ser tão americano como eles!

– Para o trem! para o trem! exclamava o condutor.

– Sim! para o trem, repetia Passepartout, para o trem! E depressa! Mas não me impedem de pensar que seria mais natural passarmos primeiro a pé pela ponte, nós os viajantes, depois que passasse o trem!...

Mas ninguém ouviu esta sábia reflexão, e ninguém decerto teria querido reconhecer sua correção.

Os viajantes estavam reintegrados em seus vagões. Passepartout retomou o seu lugar, sem nada dizer do que se passara. Os jogadores estavam totalmente absortos no jogo.

A locomotiva apitou vigorosamente. O maquinista, revertendo o vapor, recuou o trem quase uma milha – manobrando como um saltador que quer tomar impulso.

Depois, a um segundo apito, a marcha para a frente recomeçou; acelerou-se; logo a velocidade se tornou amedrontadora; só se ouvia um uivo saindo da locomotiva; os pistões batiam vinte golpes por segundo; os eixos das rodas fumegavam nas caixas de graxa. Sentia-se, por assim dizer, que o trem inteiro, galopando com uma velocidade de cem milhas por hora, não pesava sobre os rails. A velocidade comia o peso.

E passou! Foi como um relâmpago. Nem se viu a ponte. O comboio saltou, pode-se dizer, de uma margem à outra, e o maquinista não conseguiu deter a máquina levada pelo impulso senão cinco milhas além da estação.

Mas mal o trem tinha passado, a ponte, definitivamente arruinada, desmoronava e caía com estrondo no desfiladeiro de Medicine Bow.

Fonte: http://jv.gilead.org.il/rpaul/

XXVII - Em que Passepartout segue, com uma velocidade de vinte milhas por hora, um curso de história Mórmon

Durante a noite de 5 para 6 de dezembro, o trem correu a sudeste pelo espaço de quase cinquenta milhas; depois elevou-se outro tanto para nordeste, aproximando-se do grande lago Salgado.

Passepartout, pelas nove da manhã, veio tomar ar sobre os passadiços. O tempo estava frio, o céu cinza, mas não nevava. O disco do sol, amplificado pelas brumas, parecia uma enorme moeda de ouro, e Passepartout entretinha-se calculando seu valor em libras esterlinas, quando foi distraído deste útil trabalho pela aparição de um personagem bastante estranho.

Este personagem, que tinha tomado o trem na estação de Elko, era um homem de estatura elevada, muito moreno, bigodes pretos, meias pretas, chapéu de seda preta, colete preto, calça preta, gravata branca, luvas de pele de cão. Parecia um reverendo. Ia de uma extremidade do trem à outra, e na porta de cada vagão colava com obreias um aviso escrito à mão.

Passepartout aproximou-se e leu em um destes avisos que o honrado “elder” William Hitch, missionário mórmon, aproveitando a sua presença no trem n.º 48, faria, das onze ao meio dia, no carro n.º 117, uma conferência a respeito do mormonismo – convidando para ouvi-lo todos os gentleman desejosos de se instruírem no tocante aos mistérios da religião dos “Santos dos últimos dias”.

– Claro, irei, se disse Passepartout, que não sabia nada do mormonismo exceto seus usos polígamos, base da sociedade mórmon.

A notícia espalhou-se rapidamente pelo trem, que levava uma centena de viajantes. Deste total, trinta ou mais, atraídos pelo chamado da conferência, ocupavam às onze horas os bancos do carro n° 117. Passepartout figurava na primeira fila dos fiéis. Nem seu patrão nem Fix tinham achado que deviam sair de seus lugares.

À hora anunciada, o elder William Hitch levantou-se, e com uma voz bastante exaltada, como se já tivesse sido refutado de antemão, exclamou:

– Eu vos digo, eu, que Joe Smith é um mártir, que seu irmão Hiram é um mártir, e que as perseguições do governo da União contra os profetas vão fazer igualmente um mártir de Brigham Young! Quem ousará sustentar o contrário?

Ninguém se atreveu a contradizer o missionário, cuja exaltação contrastava com sua fisionomia naturalmente calma. Mas, sem dúvida, sua cólera se explicava pelo fato de que o mormonismo estava atualmente submetido a duras provas. E, com efeito, o governo dos Estados Unidos acabava, não sem dificuldade, de dominar estes fanáticos independentes. Tinha se assenhorado de Utah, e o tinha submetido às leis da União, depois de ter aprisionado Brigham Young, acusado de rebelião e de poligamia. Desde esta época, os discípulos do profeta redobraram seus esforços, e, aguardando os atos, resistiam pela palavra às pretenções do Congresso.

Como se vê, o elder William Hitch fazia proselitismo até em estrada de ferro.

E então contou, inflamando seu discurso com elevações da voz e a violência de seus gestos, a história do Mormonismo desde os tempos bíblicos: “como, em Israel, um profeta mórmon da tribo de Joseph publicou os anais da nova religião, e os legou a seu filho Morom; como, muitos séculos depois, uma tradução deste precioso livro, escrito em caracteres egípcios, foi feita por Joseph Smith junior, fazendeiro do Estado de Vermont, que se revelou como profeta místico em 1825; como, finalmente, um mensageiro celeste lhe apareceu numa floresta luminosa e lhe devolveu os anais do Senhor.”

Neste momento, alguns ouvintes, pouco interessados pela narrativa retrospectiva do missionário, deixaram o vagão; mas William Hitch, continuando, contou “como Smith junior, reunindo seu pai, seus dois irmãos e alguns discípulos, fundou a religião dos Santos dos últimos dias – religião que, adotada não só na América, mas na Inglaterra, na Escandinávia, na Alemanha, conta entre seus fiéis artesãos e também grande número de pessoas que exercem profissões liberais; como uma colônia foi fundada no Ohio; como um templo foi edificado ao preço de duzentos mil dólares e uma cidade fundada em Kirkland; como Smith se tornou um audacioso banqueiro e recebeu de um simples expositor de múmias um papiro contendo uma narrativa escrita pela mão de Abraham e outros célebres Egípcios.”

Esta narrativa tornando-se um pouco longa, as filas dos ouvintes rarearam ainda mais, e o público só se compunha agora de umas vinte pessoas.

Mas o elder, sem se inquietar com essa deserção, contou com detalhes “como foi que Joe Smith foi à bancarrota em 1837; como foi que os seus acionistas arruinados o untaram de alcatrão e o rolaram sobre penas; como foi que o reencontramos, mais honorável e mais honrado do que nunca, alguns anos depois, em Independance, no Missouri, e chefe de uma comunidade florescente, que não contava menos de três mil discípulos, e que então, perseguido pelo ódio dos gentios, teve de fugir para o Far West americano.”

Dez ouvintes ainda estavam lá, e entre eles o bom Passepartout, que escutava com a maior atenção. Foi assim que aprendeu “como, depois de longas perseguições, Smith reapareceu no Illinois e fundou em 1839, sobre as margens do Mississipi, Nauvoo-la-Belle, cuja população se elevou a vinte e cinco mil almas; como Smith se tornou prefeito, juiz supremo e general em chefe desta comunidade; como, em 1843, lançou sua candidatura à presidência dos Estados Unidos, e como finalmente, atraído a uma cilada, em Carthago, foi lançado na prisão e assassinado por um bando de homens mascarados.”

Neste momento, Passepartout estava absolutamente só no vagão e o elder, olhando-o na face, fascinando-o com as suas palavras, lhe contou que, dois dias depois do assassinato de Smith, seu sucessor, o profeta inspirado, Brigham Young, abandonando Nauvoo, veio se estabelecer nas margens do lago Salgado, e que lá, sobre esse admirável território, em meio desta região fértil, no caminho dos emigrantes que atravessavam Utah para se dirigirem à Califórnia, a nova colônia, graças aos princípios polígamos do mormonismo, floresceu.


Fonte: http://jv.gilead.org.il/rpaul/

– E aí está, acrescentou William Hitch, aí está o por quê do ciúme do Congresso se exercer contra nós! porque os soldados da União pisotearam o solo de Utah! porque nosso chefe, o profeta Brigham Young, foi preso com menosprezo de toda justiça! Cederemos à força? Jamais! Expulsos do Vermont, expulsos do Illinois, expulsos do Ohio, expulsos do Missouri, expulsos do Utah, reencontraremos ainda algum território independente onde plantaremos nossa tenda... E vós, meu fiel, acrescentou o elder, fitando no seu único ouvinte olhares coléricos, plantareis a vossa à sombra da nossa bandeira?

– Não, respondeu corajosamente Passepartout, que saiu, deixando o energúmeno a pregar no deserto.

Durante a conferência, o trem tinha andado rapidamente, e, pelo meio dia e meia, tocava no ponto noroeste do grande lago Salgado. Daí, podia-se divisar, sobre um grande perímetro, o aspecto desse mar interior, que também tem o nome de mar Morto e no qual deságua um Jordão da América. Lago admirável, enquadrado por belas rochas selvagens, em grandes camadas, encrustadas de sal branco, soberbo lençol de água que cobria outrora um espaço mais considerável; mas com o tempo, suas margens, subindo pouco a pouco, reduziram sua superfície aumentando sua profundidade.


Fonte: http://jv.gilead.org.il/rpaul/

O lago Salgado, do comprimento de quase setenta milhas, trinta e cinco milhas de largura, está situado a três mil e oitocentos pés acima do nível do mar. Bem diferente do lago Asphaltite, cuja depressão acusa duzentos pés abaixo, sua salgacidade é considerável, e suas águas têm em dissolução o quarto de seu peso de matéria sólida. Seu peso específico é de 1.170, o da água distilada sendo 1.000. Por isso os peixes não podem aí viver. Os que o Jordão, o Weber e outros creeks aí lançam morrem logo; mas não é verdade que a densidade das águas seja tal que um homem não possa mergulhar nelas.

Em redor do lago, o campo estava muito bem cultivado, porque os mórmons são hábeis nos trabalhos da terra: ranchos e currais para os animais domésticos, campos de trigo, de milho, de sorgo, pradarias luxuriantes, por toda parte sebes de roseiras selvagens, buquês de acácias e do eufórbios, tal teria sido o aspecto desta região seis meses mais tarde; mas neste momento o solo desaparecia sob uma fina camada de neve, que o polvilhava ligeiramente.

Às duas horas, os viajantes desceram na estação de Ogden. O trem não deveria partir de novo senão às seis horas. Mr. Fogg, Mrs. Aouda e seus dois companheiros tinham pois tempo para visitar a Cidade dos Santos pelo pequeno ramal que sai da estação de Ogden. Duas horas bastariam para visitar esta cidade absolutamente americana e, como tal, edificada no padrão de todas as cidades da União, vastos taboleiros de xadrez com longas linhas frias, com a “tristeza lúgubre dos ângulos rectos” segundo a expressão de Victor Hugo. O fundador da Cidade dos Santos não podia escapar desta necessidade de simetria que caracteriza os anglo-saxões. Neste país tão singular, onde os homens não estão por certo à altura das instituições, tudo se faz “ao quadrado”, as cidades, as casas e as tolices.

Às três horas, os viajantes passeavam ainda pelas ruas da cidade, edificada entre a margem do Jordão e as primeiras ondulações dos montes Wahsatch. Notaram poucas ou nenhuma igreja, mas, como monumentos, a casa do profeta, o tribunal e o arsenal; depois, as casas de tijolos azulados com varandas e galerias, rodeadas de jardins bordados de acácias, palmeiras e alfarrobeiras. Um muro de argilha e de calhaus, construído em 1853, cingia a cidade. Na rua principal, onde está o mercado, elevavam-se alguns hotéis ornados com pavilhões, e entre outros o Lake Salt House.

Mr. Fogg e os seus companheiros não acharam a cidade muito povoada. As ruas estavam quase desertas – menos a parte do Templo – onde não chegaram senão depois de ter atravessado muitos bairros rodeados por paliçadas. As mulheres eram muito numerosas, o que se explica pela singular composição familiar mórmon. Não se deve contudo supor que todos os mórmons sejam polígamos. Há liberdade de escolha, mas é bom notar que são as cidadãs de Utah que querem sobretudo ser esposadas, porque, de acordo com a religião local, o céu mórmon não admite o acesso às suas beatitudes às celibatárias do sexo feminino. Estas pobres criaturas não parecem nem chateadas nem felizes. Algumas, as mais ricas decerto, trajavam uma jaqueta de seda preta aberta na cintura, sob um capuz ou de um chale muito modesto. As demais vestiam-se com chita.

Passepartout, esse, na sua qualidade de solteiro convicto, não olhava sem certo terror para as mórmons encarregadas de fazerem, em penca, a felicidade de um só mórmon. Em seu bom senso, lastimava os maridos. Parecia-lhe uma coisa terrível ter de guiar tantas mulheres através das vicissitudes da vida, conduzi-las assim em penca ao paraíso mórmon, com a perspectiva de tornar a encontrá-las na eternidade, em companhia do glorioso Smith, que deveria ser o ornamento deste lugar de delícias. Decididamente, não sentia a vocação, e achava – talvez nisto se iludisse – que as cidadãs do Great Lake City deitavam sobre sua pessoa olhares um pouco inquietadores.

Muito felizmente, sua permanência na Cidade dos Santos não deveria prolongar-se. Às quatro horas menos alguns minutos, os viajantes estavam outra vez na estação e retomavam seus lugares nos vagões.

O apito do trem se fez ouvir; mas no momento em que as rodas motoras da locomotiva, patinando sobre os rails, começavam a imprimir ao trem alguma velocidade, estes gritos: “Parem! parem!” ressoaram.

Não se detém um trem em movimento. O gentleman que proferia estes gritos era evidentemente algum mórmon retardatário. Corria a ponto de ficar sem ar. Felizmente para ele, a estação não tinha nem portas nem barreiras. Lançou-se então sobre a via, saltou sobre o estribo do último vagão, e caiu sem ar sobre um dos bancos do vagão.

Passepartout, que tinha seguido com interesse os percalços desta ginástica, veio contemplar o retardatário, pelo qual se interessou muito quando soube que este cidadão de Utah só tinha tentado a fuga depois de um acontecimento doméstico.

Quando o mórmon tomou fôlego, Passepartout animou-se a perguntar-lhe polidamente quantas mulheres tinha, para ele só – pois pela maneira que vinha de dar no pé, supunha que tinha umas vinte, pelo menos.

– Uma, senhor! respondeu o mórmon levantando os braços para o céu, uma e já era muito!

XXVI - Em que se pega o trem expresso da Estrada de Ferro do Pacífico

“Ocean to ocean” – assim dizem os americanos – e estas três palavras deviam ser a denominação geral do “grand trunk” que cruza os Estados Unidos da América em toda a sua extensão. Mas, em realidade, o “Pacific rail-road” se divide em duas partes distintas: “Central Pacífic” entre São Francisco e Ogden e “Union Pacífic” entre Ogden e Omaha. Lá se encontram cinco linhas distintas, que põem Omaha em comunicação frequente com Nova York.

Nova York e São Francisco estão portanto presentemente reunidas por uma faixa de metal ininterrupta que não mede menos de três mil setecentas e oitenta e seis milhas. Entre Omaha e o Pacífico, a estrada de ferro percorre um território ainda frequentado pelos índios e pelas feras – vasta extensão territorial que os Mórmons começaram a colonizar por volta de 1845, depois que foram expulsos do Illinois.

Outrora, nas circunstâncias as mais favoráveis, gastavam-se seis meses para ir de Nova York a São Francisco. Atualmente, apenas sete dias.

Foi em 1862 que, apesar da oposição dos deputados do Sul, que queriam uma linha mais meridional, o traçado da rail-road foi assentado entre os paralelos quarenta e um e quarenta e dois. O presidente Lincoln, de tão saudosa memória, fixou pessoalmente, no Estado de Nebraska, na cidade de Omaha, o ponto inicial do novo ramal. Os trabalhos foram logo iniciados e tocados com aquela atividade americana, que não é nem cheia de papéis, nem burocrática. A rapidez da mão-de-obra não deveria prejudicar de forma alguma a boa execução do caminho. Na pradaria, os trabalhos avançaram na proporção de uma milha e meia por dia. Uma locomotiva, rolando sobre os rails da véspera, levava os rails do dia seguinte, e se corria por eles assim que eram assentados.

A Pacific Railroad lança diversos ramais em seu percurso, nos Estados de Iowa, Kansas, Colorado e Oregon. Saindo de Omaha, costeia a margem esquerda do Platte River até a junção com o ramal do norte, segue a ramificação do sul, cruza o território de Laramie e as montanhas Wahsatch, contorna o Great Salt Lake, chega a Salt Lake City, a capital dos Mórmons, penetra pelo vale da Tuilla, pelo deserto americano, as montanhas de Cedar e Humboldt, Humboldt River, Sierra Nevada, e torna a descer por Sacramento até o Pacífico, sem que este traçado ultrapasse em nada cento e doze pés por milha, mesmo na travessia das montanhas Rochosas.

Tal era a longa artéria que os trens percorriam em sete dias, e que iria permitir ao honrado Phileas Fogg – ele ao menos o esperava – pegar, dia 11, em Nova York, o paquete para Liverpool.

O vagão ocupado por Phileas Fogg era uma espécie de ônibus comprido que repousava sobre dois trens formados por quatro rodas cada um, cuja mobilidade permitia atacar curvas de pequeno raio. No interior, nada de compartimentos: duas filas de assentos, dispostos de cada lado, perpendicularmente ao eixo, e entre os quais havia uma passagem que conduzia aos gabinetes de toilette e outros, com que cada vagão era provido. Sobre toda a extensão do trem, os veículos se comunicavam através de corredores, e os viajantes podiam circular de uma extremidade à outra do comboio, que colocava à sua disposição vagões-salões, vagões-terraços, vagões-restaurantes e vagões-cafés. Só faltavam vagões-teatros. Mas algum dia haverá.

Sobre os corredores circulavam incessantemente vendedores de livros e de jornais, anunciando sua mercadoria, e vendedores de bebidas, comestíveis, charutos, aos quais não faltavam compradores.

Os viajantes tinham partido da estação de Oakland às seis horas da tarde. Já era noite – uma noite fria, sombria, com um céu coberto de nuvens que ameaçavam desfazer-se em neve. O trem não andava com grande rapidez. Levando em conta as paradas, não percorria mais de vinte milhas por hora, velocidade que lhe deveria, contudo, permitir atravessar os Estados Unidos no tempo regulamentar.

Conversava-se pouco no vagão. Aliás, o sono logo iria ganhar os viajantes. Passepartout se achava sentado atrás do inspetor de polícia, mas não falava com ele. Desde os últimos acontecimentos, suas relações tinham arrefecido muito. Nada de simpatia, nada de intimidade. Fix não tinha mudado nada em sua maneira de ser, mas Passepartout conservava-se, pelo contrário, numa extrema reserva, pronto para à menor suspeita estrangular seu antigo amigo.

Uma hora depois da partida do trem, a neve caiu – neve fina, que não poderia, felizmente, atrasar a marcha do comboio. Só se via através das janelas uma imensidão branca, sobre a qual, desenrolando suas volutas, o vapor da locomotiva parecia sombrio.

Às oito horas um “steward” entrou no vagão e anunciou aos viajantes que a hora de dormir tinha chegado. Este vagão era um “sleeping-car”, que, em poucos instantes, foi transformado em dormitório. Os encostos dos bancos se desdobraram, os colchonetes cuidadosamente embrulhados se desenrolaram por um sistema engenhoso, cabinas foram improvisadas em alguns instantes, e cada viajante teve logo à sua disposição um leito confortável, que espessas cortinas protegiam de qualquer olhar indiscreto. Os lençóis eram brancos, os travesseiros macios. Bastava deitar e dormir – o que cada um fez como se estivesse na cabina confortável de um paquete – enquanto o trem corria a todo vapor através do estado da Califórnia.


Fonte: http://jv.gilead.org.il/rpaul/

Na região entre São Francisco e Sacramento, o solo é pouco acidentado. Este trecho da estrada de ferro, sob o nome de “Central Pacific Road”, toma Sacramento por ponto de partida, e avança para leste ao encontro do que parte de Omaha. De São Francisco à capital da Califórnia, a linha corria diretamente para nordeste, ladeando o American River, que desagua na baía de San Pablo. As cento e vinte milhas compreendidas entre estas duas importantes cidades foram percorridas em seis horas, e pela meia noite, enquanto dormiam o primeiro sono, os viajantes passaram por Sacramento. Nada viram portanto desta cidade importante, sede da legislatura do Estado de Califórnia, nem os seus belos cais, nem suas ruas largas, nem seus hotéis esplêndidos, nem as praças, nem os templos.

Saíndo de Sacramento, o trem, depois de ter passado pelas estações de Junction, Roclin, Auburn, e Colfax, embrenhou-se no maciço da Sierra Nevada. Eram sete horas da manhã quando foi atravessada a estação de Cisco. Uma hora depois, o dormitório voltava a ser um vagão comum e os viajantes podiam através das vidraças entrever os pontos pitorescos deste território montanhoso. O traçado do trem obedecia aos caprichos da Sierra, aqui suspenso nos flancos da montanha, acolá suspenso sobre precipícios, evitando os ângulos bruscos por curvas audaciosas, lançando-se por gargantas estreitas que pareciam não ter saída. A locomotiva, radiante como um oratório, com sua grande fornalha que lançava fagulhas amareladas, seu sino prateado, seu “caça-vaca” que se estendia como um esporão, misturava os seus silvados e mugidos com o das torrentes e das cascatas, torneava sua fumaça na negra ramagem dos pinheiros.

Poucos ou nenhum túnel, nem pontes sobre o percurso. A rail-road contornava o flanco das montanhas, não procurando na linha reta o caminho mais curto de um ponto a outro, e não violentando a natureza.

Por volta das nove horas, pelo vale de Carson, o trem penetrou no Estado do Nevada, seguindo sempre a direção nordeste. Ao meio dia, deixava Reno, onde os viajantes tiveram vinte minutos para almoço.

A partir deste ponto, a via férrea, costeando Humboldt River, elevou-se, por algumas milhas, para o norte, seguindo o seu curso. Depois infletiu para o leste, e não deveria mais deixar o curso d’água antes de ter atingido os Humboldt Ranges, onde tem sua nascente, quase na extremidade oriental do Estado de Nevada.

Depois de almoçarem, Mr. Fogg, Mrs. Aouda e os seus companheiros retomaram seus lugares no vagão. Phileas Fogg, a jovem, Fix e Passepartout, confortavelmente sentados, contemplaram a paisagem variada que passava diante dos seus olhos – vastas pradarias, montanhas se perfilando no horizonte, “creeks” rolando suas águas espumosas. Por vezes, uma grande manada de bisões, amontoando-se ao longe, pareciam um dique móvel. Estes inúmeros exércitos de ruminantes opõem com frequência um obstáculo intransponível à passagem dos trens. Já se viu milhares destes animais desfilarem por horas, em filas compactas, atravessando a via férrea. A locomotiva é então forçada a parar e esperar que a via fique novamente livre.

Foi exatamente o que aconteceu nesta ocasião. Pelas três horas da tarde, uma manada de dez a doze mil cabeças barrou a rail-road. A máquina, depois de ter moderado sua velocidade, tentou meter seu esporão no flanco da imensa coluna, mas teve de parar diante da impenetrável massa.


Fonte: http://jv.gilead.org.il/rpaul/

Via-se estes ruminantes – estes búfalos, como impropriamente os chamam os americanos – caminhar com o seu passo tranquilo, soltando por vezes formidáveis mugidos. Tinham um porte superior ao dos touros da Europa, pernas e rabo curtos, garrote saltado que formava uma corcova muscular, cornos separados na base, cabeça, pescoço e lombo cobertos por crinas de pêlo comprido. Nem se poderia pensar em deter uma migração destas. Quando adotaram uma direção, nada é capaz nem de desviar nem de modificar sua marcha. É uma torrente de carne viva que nenhum dique saberia represar.

Os viajantes, dispersos pelos corredores, contemplavam este curioso espetáculo. Mas o que devia estar mais apressado, Phileas Fogg, ficara no seu lugar e esperava filosoficamente que aprouvesse aos búfalos lhe dar passagem. Passepartout estava furioso com a demora causada por esta aglomeração de animais. Teria desejado descarregar contra eles o seu arsenal de revólveres.

– Que país! exclamou. Simples bois que param os trens, e que lá se vão, procissionalmente, sem se preocuparem com o fato de embaraçarem a circulação. Minha Nossa! Desejaria muito saber se Mr. Fogg previu este contratempo no seu programa! E o maquinista que não se atreve a lançar sua máquina através deste gado embaraçoso!

O maquinista não havia tentado ultrapassar o obstáculo, e agira com prudência. Teria esmagado os primeiros búfalos atacados pelo esporão da locomotiva; mas, por muito potente que fosse, a máquina teria sido logo detida, dar-se-ia inevitavelmente um descarrilhamento, e o trem teria ficado em pedaços.

O melhor era mesmo esperar pacientemente, tentar em seguida recuperar o tempo perdido por uma aceleração da marcha do trem. O desfile dos bisões durou três longas horas, e a via só ficou livre quando a noite já caía. Neste momento, as últimas filas da manada atravessavam os rails, enquanto que as primeiras desapareciam no horizonte ao sul.

Eram então oito horas, quando o trem franqueou os desfiladeiros dos Humboldt Ranges, e nove e meia, quando penetrou no território de Utah, a região do grande lago Salgado, o curioso território dos Mórmons.
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